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A idade e a infertilidade feminina: meiose e aneuploidia

Postado na categoria Artigos em e atualizado em 25/11/2024

Primeiramente, o que é aneuploidia?

A informação genética de uma célula está codificada em moléculas denominadas ADN (mais conhecida a sigla em inglês, DNA) e armazenada, em sua maior parte, no núcleo da célula. No núcleo, essas moléculas de DNA estão associadas a proteínas específicas, formando complexos que são denominados cromatina. Às vezes a cromatina encontra-se compactada (uma cromatina compactada é uma fita de DNA enrolada sobre as proteínas e essa estrutura, por sua vez, enrolada sobre si mesma). O grau de compactação varia com a fase do ciclo de vida da célula e à cromatina altamente compactada dá-se o nome de cromossomo (cromatina e cromossomo são, então, dois aspectos morfológicos e fisiológicos da mesma estrutura!).

A quantidade de DNA por núcleo varia de espécie para espécie e é característica para cada espécie, ou seja, mantém-se constante em todas as células e em todas as fases de sua vida.
O ciclo de vida de uma célula é dividido em duas fases principais: a divisão e a intérfase (que é o período entre duas divisões celulares consecutivas). Para que uma célula se divida em duas outras exatamente como ela é necessário que cada célula-filha receba a mesma quantidade de DNA. Para tanto, durante a fase de intérfase, cada molécula (fita) de DNA duplica-se em outra idêntica e, no processo de divisão, essas moléculas serão equitamente distribuídas para as células-filhas restaurando a quantidade característica de DNA da espécie.

Se cromossomo é o nome dado à cromatina compactada e cromatina é o nome dado ao complexo DNA-protéinas, então o número de cromossomos de uma célula é o mesmo número de fitas de DNA desta célula e deve sempre ser constante. Quando uma célula não apresenta o número correto de cromossomos, diz-se que se trata de uma célula aneuploide (aneuploidia: nome dado quando uma célula contém um número anormal de cromossomos).

Aproximadamente 0,3% dos nascidos vivos são cromossomicamente anormais, sendo as alterações mais comuns as trissomias do cromossomo 21, 18 e 13, além de aneuploidias dos cromossomos sexuais. É difícil quantificar, mas acredita-se que a incidência de aneuploidias durante a concepção e nos primeiros dias pós-fertilização seja duas vezes maior. A maioria das anomalias cromossômicas presentes no período pré-implantacional não são compatíveis com o desenvolvimento embrionário, impedindo que a gestação chegue a termo (por exemplo: acredita-se que 80% dos fetos com trissomia do 21 são abortados espontaneamente). Em outras situações, aneuploidia pode interferir na viabilidade do óvulo, impedindo a entrada do espermatozóide ou ainda impedindo os processos subsequentes à entrada do espermatozóide, ou seja, não permitindo a formação do zigoto.

Aneuploidia então é uma importante causa de infertilidade. Em espermatozóides, paradoxalmente ao elevado número produzido, a taxa de aneuploidia varia de 1 a 2%, mas em óvulos essa taxa é calculada em cerca de 10 a 20%. Ou seja, em uma mulher qualquer, estima-se que 10 a 20% de seus gametas contenha um número diferente de cromossomos. Infelizmente ainda, sabe-se que essa taxa de aneuploidia aumenta com a idade da mulher podendo chegar a 60% em mulheres mais velhas.

Para entender porque há o aumento dessa taxa de aneuploidia com o aumento da idade da mulher é importante entender como se dá a produção dos gametas femininos (ovogênese).

Um breve resumo sobre meiose.

Antes de qualquer coisa é importante lembrar que os seres de reprodução sexuada apresentam quantidades pares de cromossomos, isso porque cada ser vivo recebe um cromossomo de cada tipo de cada um dos pais. Em outras palavras, nas células existem pares de cromossomos homólogos: um de origem materna outro de origem paterna (na espécie humana, por exemplo, são 23 cromossomos de origem materna e 23 de origem paterna, totalizando 46 cromossomos, que é o normal).

Meiose é um tipo especial de divisão celular onde cada célula com uma quantidade normal de cromossomos (ditas células diplóides, ou 2n) se divide gerando 4 células com metade do número de cromossomos (ditas células haplóides, ou n) e ainda geneticamente diferentes da célula-mãe. Essa redução é vital pois, ao se fundirem, dois gametas irão gerar uma célula com a mesma quantidade X de cromossomos e não 2X!

Na meiose, diferente do processo convencional de divisão (a mitose), após uma única duplicação do DNA, a célula primordial passará por duas divisões celulares consecutivas (meiose I e meiose II) produzindo gametas haplóides.

Porque é longo e porque guarda muitos eventos cruciais, todo o processo da meiose é, por convenção puramente didática, subdividido em fases, para sua melhor compreensão. São ao todo 9 fases: Intérfase; Profase I; Metáfase I; Anáfase I; Telófase I; Profase II; Metáfase II; Anáfase II e Telófase II.

Todas as fases guardam eventos importantes, mas uma fase em especial, a Profase I, é a principal chave para o entendimento da ocorrência de aneuploidia, especialmente em óvulos de mulheres mais velhas. Isso porque é uma fase onde ocorrem eventos biologicamente críticos e é, inclusive por isso, uma fase muito longa.

Para entender melhor a origem da aneuploidia, um pouco de biologia: em ratos (o modelo mais comumente utilizado para estudos), cerca de 7 dias pós-coito, algumas poucas (cerca de 45) células (genócitos) migram através do feto para colonizar o que será, futuramente, a gônada do animal. Quando ali chegam, continuam dividindo-se mitoticamente, durante 13 dias pós-coito. Nesse momento é quando vai haver a sexagem do feto. Até então, existe um gene (chamado cyp26b1) que está ativo e impede que essas células primordiais respondam ao estímulo de uma certa substância chave, o ácido retinóico (o gene produz P450, uma enzima metabolizdora de ácido retinóico).

A partir do 12º dia pós coito, naqueles fetos geneticamente fêmeas, a expressão desse gene cai, enquanto que naqueles fetos geneticamente machos o gene continua ativo. Nos fetos fêmeas então, com a supressão deste gene, ocorre a entrada, no ovário em desenvolvimento, de uma onda de ácido retinóico que servirá de estímulo para que as células primordiais entrem em meiose. Como se trata de uma onda (e a onda dura 3 dias), as células primordiais da ratinha em desenvolvimento não entram ao mesmo tempo em meiose: a primeira ovogônia (nome dado à célula precursora de óvulos), entra em meiose com 13,5 dias pós coito, mas há ovogônias que só entrarão em meiose em 16, 5 dias pós-coito. As ratinhas nascem no 20º dia pós-coito e no primeiro dia pós parto a primeira fase da meiose I já se completa.

Da mesma forna, na espécie humana, no 5º mês de vida intra-útero, todos os ovócitos que serão formados pela mulher já se encontram em prófase I e assim permanecerão por vários anos, pelo menos até a fase de maturidade sexual (puberdade), ou até os 40-50 anos de idade. Durante a vida reprodutiva da mulher, 20 a 30 dessas células, a cada mês, serão recrutadas para completarem a 1ª divisão da meiose e chegarão até a fase de metáfase II, onde o processo será interrompido, mais uma vez. Somente se o óvulo for fecundado por um espermatozóide é que o processo de meiose se completará.
Um detalhe em estudo (infelizmente ainda não exaustivo!) desse processo é a questão dessa onda de ácido retinóico no ovário. Suspeita-se que os primeiros óvulos a receberem o estímulo para entrarem em meiose sejam exatamente os primeiros óvulos a serem recrutados nos primeiros ciclos menstruais. Se assim for, com o passar dos anos de vida reprodutiva da mulher, os óvulos restantes no ovário são aqueles que receberam um estímulo tardiamente, portanto podem vir a ser de pior qualidade.

Não é difícil de supor ainda que, durante esse período muito longo em que os gametas ficam pausados no ovário, aumenta-se muito o risco de que ocorram eventos indesejáveis, tais como exposição das células reprodutivas à agentes tóxicos (por exemplo: experimentos em laboratório mostram que exposição a um tipo de estrógeno artificial, seja por exposição direta ou na dieta, leva a aneuploidia em ratos; também já foi objeto de estudo in vitro, a aneuploidia como consequência de exposição à concentrações elevadas do hormônio FSH, também em ratos; também o fumo tem sido apontado como um fator nocivo extrínseco). E existe ainda o risco de que o “maquinário” celular responsável pelos processos moleculares da meiose se deteriore ao longo desses anos.

A prófase I

A primeira fase da primeira divisão meiótica- prófase I, é quando ocorre um dos eventos mais críticos para a diversidade genética de uma espécie de reprodução sexuada: o pareamento dos cromossomos homólogos para que ocorra a recombinação genética (também conhecida como permuta ou, do inglês, crossing-over). De tão longa, a prófase I é, por sua vez, didaticamente, subdividida em 6 fases:

Leptóteno – fase inicial, em que há o aumento da condensação da cromatina em cromossomos e o início do processo de aproximação e pareamento dos cromossomos homólogos;

Zigóteno – quando se estabelece a união entre os cromossomos do par homólogo, através de uma “ligação”, ou sinapse, mantida por proteínas específicas, entre os cromossomos homólogos. A sinapse se dá ordenadamente, ponto por ponto, como um zíper sendo fechado, aproximando os homólogos de forma a ficarem alinhados lateralmente, de uma maneira precisa, porém, sem se fundirem.

Paquíteno – assim que a sinapse se completa e os cromossomos estão precisamente pareados, incia-se o evento da recombinação genética que nada mais é do que quebra e troca de segmentos das fitas de DNA entre os cromossomos homólogos. Ao final da permuta as fitas resultantes são geneticamente diferentes das fitas originais- é o 1º passo para a diversidade genética do processo de reprodução sexuada.

Dado a importância deste evento, só a fase do paquíteno dura semanas, em contraposição com outras fases da meiose que duram apenas algumas horas.

Diplóteno – numa fase também longa (de intensa atividade metabólica), uma vez finalizada a permuta, inicia-se a remoção do complexo protéico que constitui as sinapses, soltando o par de homólogos. Essa separação porém, não é completa: sobram vestígios (cicatrizes) do complexo em alguns pontos. Essas cicatrizes são conhecidas como quiasmatas e são evidências citológicas do crossing-over.

É na fase de diplóteno que as células se mantém pauseadas ao longo da vida da mulher, desde a vida fetal até imediatamente antes da ovulação.

Existe uma suspeita de que uma das causas de uma maior taxa de aneuploidia em mulheres mais velhas seja devido à falta de quiasmatas nesses óvulos. A não formação dessas cicatrizes da recombinação (recombinação anômala) faz com que o par se solte prematuramente (pré-divisão) gerando células-filhas com número diferente de cromossomos. Esse evento tem sido associado à idade da mulher.

Diacinese – essa última fase da prófase I é, na verdade, uma preparação para a fase seguinte (a metáfase I): ocorre marcante aumento da condensação dos cromossomos, desaparecimento de nucléolos, ruptura do envólocro nuclear, ligação de cada cromossomo do par aos fusos meióticos e movimento destes para a região equatorial da célula.

É muito importante considerar o que mantém os cromossomos homólogos pareados e as fitas de DNA duplicatas juntas (chamadas cromátides-irmãs), porque se essas uniões forem perturbadas, pode levar a disjunção errada, e consequentemente, gerar aneuploidia por não disjunção.

O Complexo coesina

O complexo coesina é uma estrutura protéica em forma anel que mantém juntas as duas fitas de DNA duplicadas (cromátides-irmãs) em cada um dos cromossomos homólogos.

A perda da coesina é diferente quando se trata de mitose e meiose. A sua remoção em cada um dos tipos de divisão celular é dada por processos metabólicos diferentes. Na mitose, a remoção é feita por um processo denominado fosforilação (troca de íons fosfato na molécula de proteína com o objetivo de ligar/desligar a sua atividade), já na meiose essa é feita por proteólise, ou seja, por quebra das moléculas protéicas. Essa diferença parece só um detalhe, mas tem uma grande importância biológica: na meiose, a coesina é removida em partes, parte é perdida durante a meiose I e parte durante a meiose II.

Essa separação gradual é importante para garantir a precisão do processo. Assim, as cromátides-irmãs não se separam nem antes e nem depois do momento certo.

Acredita-se que o aparato celular que regula essa separação é completamente funcionante em oócitos jovens, mas não mais em oócitos mais velhos. Desta forma, em oócitos de mulheres mais velhas, a capacidade da célula em reconhecer e reparar erros de alinhamento e separação é fraca: o complexo coesina, então pode ser um bom marcador para relacionar idade e aneuploidia, afinal, o complexo mantém juntas as fitas de DNA duplicadas por muitos e muitos anos então, como se mantem funcional durate todo esse tempo, está mais suceptivel à danos relacionados ao avanço da idade.

Em todo o processo da meiose, independente da fase, a célula dispõe de mecanismos de reparação de eventuais erros. Uma hipótese atual para derivação de óvulos aneuploides postula que dois eventos devam ocorrer para se produzir cromossomos homólogos não disjuntos: primeiro deve haver uma alteração qualquer no processo de recombinação genética. Mas isso, por si só, não é causa de aneuploidia, para que ocorra aneuploidia é necessário também que o oócito seja incapaz de reconhecer e reparar a falha na recombinação. Uma das causas desses eventos é exatamente a idade da mulher.

Em resumo, a etiologia de certas aneuploidias pode ser explicada pelo declíno idade-dependente de proteínas que constituem os complexos de união entre cromossomos homólogos e cromátides-irmãs. Isso gera inabilidade do óvulo em detectar e reparar erros resultantes. Esse processo pode ainda ser exarcerbado por exposição à agentes ambientais.

Escrito por Bernadette Ventura Veado